O enigma da violência escolar: como construir uma rede de proteção nas instituições de ensino brasileiras

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Caminho para garantir segurança é complexo e passa por uma atuação conjunta entre a escola, a família e o estado

Não é novidade no noticiário brasileiro relatos de violência em instituições de ensino. Seja de alunos contra professores, professores contra alunos, de docentes contra outros colegas, desentendimentos entre estudantes ou envolvimento de pais e responsáveis. Ameaças, xingamentos, violência física e psicológica, intimidação ou bullying. A lista é longa, e muitas dessas violações estão em consonância com a realidade dessas instituições, já que também não é segredo as mazelas da educação brasileira, que miram nos índices muitas vezes vergonhosos do nosso país nessa área, o qual lutamos para superar.

Apesar de ter se tornado cotidiano, e infelizmente normalizado – embora não seja, os relatos de violência escolar têm tido uma escalada nos últimos anos. As notícias tenebrosas de ataques em escolas nos Estados Unidos tem ecoado em diversas regiões do mundo, e o Brasil se inclui nisso. Situações envolvendo ataques coletivos, com violência em massa, fazendo vítimas entre alunos e professores, tem feito com que comunidades escolares em todo o país fiquem em alerta. Não bastante, a internet tem sido uma ferramenta usada com frequência na propaganda e planejamento dessas ocorrências.

De acordo com pesquisa da Organização para Cooperação do Desenvolvimento Econômico (OCDE), divulgada em 2019, o Brasil está acima da média mundial quando o assunto é violência escolar. Conforme mostram os dados, que foram obtidos por meio de entrevista com mais de 250 mil trabalhadores da área da educação, em 48 países, cerca de 10% das escolas brasileiras registraram ocorrências de agressão verbal e intimidação contra professores, sendo a média mundial 3%. Outros 28% dos diretores escolares brasileiros dizem já terem presenciado situações de bullying e intimidação entre alunos.

Além de apontar um alto grau de violência nas escolas brasileiras, o estudo da OCDE evidencia que há no país uma minimização e naturalização da agressividade e do bullying. Em um estudo similar realizado pela OCDE em 2017, com 34 países participantes, foi apontado que mais de 12% dos professores brasileiros enfrentavam situações de violência verbal semanalmente, estando o Brasil em primeiro lugar nesse quesito.

Há entre os professores, diretores e especialistas da área da educação um consenso de que essa violência escolar está em alta, principalmente após a pandemia. Com o aumento dos casos, e o temor de toda a comunidade escolar, cobra-se das autoridades providências que possam reverter esse processo, e garantir a segurança de todos. A apreensão é ainda maior entre pais de crianças e adolescentes, muitos deles inclusive limitando o envio de seus filhos às instituições de ensino.

Não é difícil imaginar que há sim um pânico que se descola da realidade e é desproporcional ao risco real de violência nesses ambientes, prejudicando o rendimento escolar. Mas também é inegável a necessidade de mobilização para lutar contra essa tendência de alta. A questão complicante é que, quando se olha para experiências parecidas em outros países, não há um modelo bem sucedido a ponto de erradicar ou mesmo diminuir de forma brusca essas ocorrências. Violência escolar é um fenômeno sério, que abrange diferentes países do globo, em diferentes regiões e classes sociais. Os estudos até agora divulgados mostram que a resposta não é simples, e que essa complexidade muitas vezes não é compreendida como deveria pela sociedade.

É importante salientar que, embora de forma complexa, existe luz no fim do túnel, e ela passa pelo envolvimento de toda a comunidade escolar, desde os professores, diretores e profissionais da educação em geral; os estudantes e seus responsáveis, e ainda estratégias de monitoramento, segurança pública e moderação de conteúdo nas redes.

Sociedade e violência

Não há como tratar a realidade de crescimento da violência nas comunidades escolares sem entender como base a sociedade em que estão inseridas. É nesse contexto que os especialistas destacam a inegável conexão entre o extremismo, a falta de diálogo e o ressurgimento de grupos violentos presentes hoje em nossa sociedade como combustíveis para os movimentos que colocam em risco a integridade dessas instituições de ensino.

Com foco na questão da saúde mental, a psicanalista e docente do curso de Psicologia da UniBRAS Quatro Marcos, Aline Ester, é enfática nesse sentido: “Partindo do princípio de que é muito comum a tratativa dessa temática estar envolta a questões de saúde mental, é preciso compreender que ao falarmos de saúde mental não estamos falando de um fenômeno desassociado de questões sociais, que implicam diretamente nesta cultura de violência que vem se estabelecendo e ganhando força nos últimos tempos”.

Partindo do ponto de vista que o problema não tem explicações óbvias e universais, Aline argumenta que a violência não é uma prática apenas reativa, e por isso não há solução sem antes refletirmos sobre o mundo que estamos vivendo e no desenvolvimento de ideologias extremistas, que adoecem mentalmente e colocam em risco a segurança de todos. “É um fenômeno coletivo e estrutural e deve ser tratado como tal. A violência é construída, planejada, alimentada, e fortalecida socialmente”, explica.

Essa visão também é partilhada pelo pedagogo e docente da UniBRASÍLIA EaD, Rafael Moreira. “Pensar em fatores é repensar as questões sociais, de modo geral, principalmente as familiares e de como estamos criando laços entre elas e a escola”, reflete. Para ele, o país tem um longo histórico de violência escolar, mas com o aparecimento de novas tecnologias, coisas novas apareceram e, portanto, o monitoramento deve ser mais pontual.

“Precisamos compreender que a escola é o local de encontro, de dúvidas, de inquietações, de desencontros e também de aprendizado. Por isso, uma resposta final sobre o que estamos passando deve ser uma afirmativa muito séria. Devemos considerar fatores sociais, familiares, religiosos e também da representação comportamental de outros, que de certa forma, acaba influenciando”.

Além da falta de controle familiar sobre o ambiente virtual em que seus filhos estão inseridos, e a troca das relações pessoais por relações digitais que acompanhou isso, o professor também destaca os efeitos da pandemia na saúde dos alunos. “Estamos mais sensíveis. Ainda temos resquícios pandêmicos e muitas questões ficaram ainda mais presentes, como as doenças psicossomáticas”.

A divisão de contas

Se a questão é complexa, as responsabilidades também devem ser partilhadas. De início, temos, com as autoridades, questões como cuidados na segurança pública, legislação e fiscalização. Com as empresas de tecnologia, fica a responsabilidade de monitorar e frear discursos violentos e de extremismo. Mas essa questão tem estremecido a relação entre o mundo político e as big techs.

Após as eleições americanas de 2016, em que houve uma incidência muito grande de notícias falsas, discursos difamatórios de figuras de grande exposição e grupos políticos, além de discursos de ódio, a política americana se viu estremecida pelos efeitos nefastos da internet na manutenção da democracia. Foi nesse período que começaram os debates sobre a moderação do conteúdo nas redes, e suas consequências. Enquanto o partido democrata clamava por uma legislação mais apertada, os representantes do partido republicano se manifestaram pelo risco à liberdade de expressão.

A forte polarização entre os dois partidos, as apurações do congresso americano com figurões das big techs e a aproximação desses personagens com políticos conservadores – contrários a esse monitoramento mais forte das redes; não houve uma evolução considerável no debate. No Brasil, a discussão se tornou mais contundente após as eleições de 2018, e não conseguiram evoluir também na legislatura dos quatro anos seguintes.

Deixando a parte os efeitos políticos, com a onda de violência escolar, pandemia e crise de saúde mental nos dois países, a regulação das redes começou a ganhar um outro viés: a proteção contra a violência e o extremismo. Foi nesse sentido que, neste ano, o assunto retornou ao parlamento brasileiro, e mais uma vez rendeu polêmicas. Enquanto ainda não há um claro consenso entre os políticos, sejam eles progressistas ou conservadores – há defensores e opositores dos dois lados, existe também a resistência das empresas de tecnologia em tratar a temática.

A situação é ainda mais grave quando essas redes se apoiam no poder de controle de narrativas para não cooperarem com o debate de forma ampla e justa, se negando a participar ou mesmo se valendo de manobras para influenciar a opinião pública, que com seu forte potencial em controlar o fluxo de informações, cria uma desproporcionalidade na consistências das discussões.

Como exemplo, temos representantes de uma mídia social se furtando das responsabilidades sobre conteúdo violento contra crianças compartilhados em suas contas, durante uma reunião com representantes do governo federal, em abril de 2023. Também convém destacar as iniciativas do maior buscador da internet no mundo todo em divulgar artigos de opinião com viés questionável, e impulsionar outros conteúdos com opiniões similares, além de desestimular o trânsito de conteúdos com opiniões contrárias. Também temos uma outra rede de trocas de mensagens instantâneas disparando informações falsas sobre o conteúdo do projeto de lei 2630, que legisla sobre responsabilidade e transparência na internet.

Já sobre medidas de segurança pública, o leque de providências apresentado é grande. No estado de Santa Catarina, após um ataque ser registrado, as autoridades fecharam uma cooperação com entidades de inteligência americana, mesmo os Estados Unidos não sendo uma referência em segurança escolar. No estado de São Paulo, o governo estadual se disse favorável à presença de policiais dentro das escolas, e a oposição se mostrou contrária à medida.

Em Goiás, o governador enviou à Assembleia Legislativa do estado um projeto de lei que permite aos profissionais de educação revistarem as mochilas dos alunos. Em âmbito federal, o Ministério da Educação lançou uma cartilha para ações de segurança mais pontuais, e enquanto o Ministério da Justiça criou uma central para o envio de denúncias de comportamentos suspeitos e evidências de violência nas escolas, tendo recorde de denúncias. Todas essas iniciativas ganharam aprovação mas também críticas de vários setores da sociedade, e ainda não há uma resposta definitiva nem ação conjunta entre as jurisdições.

O elo família-escola

Se parte da equação ainda está em discussão entre autoridades e as empresas de tecnologia, outra parte significante também precisa ser acionada. Ela diz respeito à integração entre a família e o ambiente escolar, sendo necessária a partilha de ações de prevenção e o melhor monitoramento entre as duas partes.

Para o professor Rafael Moreira, é necessário equilibrar melhor os pesos, com a família atuando no monitoramento dos filhos, inclusive no mundo virtual, além do ciclo social e na vida fora da escola. Por outro lado, as escolas têm a responsabilidade de trazerem as famílias para fazer parte da rotina educacional, e também monitorar os alunos nesse ambiente.

“Os ataques podem surgir através de pequenos comportamentos, isolamentos e até mesmo pelas redes sociais. É necessário que a escola e a família tenham uma relação de parcerias e não de confrontos”, enfatiza o pedagogo. Ele indica a necessidade de medidas preventivas, de orientação e de acompanhamento dos estudantes, zelando pela integridade e pela cidadania.

O educador também alerta para a observância das iniciativas de segurança, para que possam ser mais efetivas, e ao mesmo tempo não gerar mais prejuízos ao ambiente escolar. “Se analisarmos, quando vamos ao banco, fazemos uma viagem de avião, entramos em determinadas festas e lugares e até mesmo em alguns países, existe uma segurança sim. Temos que ter cuidado da forma como estamos apresentando isso, já que essas falas, os comportamentos e tantos outros itens podem ser necessários também podem também gerar afastamentos”.
A professora Aline Ester também concorda com o maior monitoramento das redes, tanto do ponto da legislação, quanto por parte dos pais e da escola. “O sentimento de se fazer parte de um grupo que “acolhe” jovens que, justamente em meio aos problemas sociais, não são “acolhidos” em outros espaços, faz com que eles sejam muito facilmente influenciados por ideias que permeiam esses fenômenos”, explica, argumentando que muitas crianças e adolescentes se veem influenciados por conteúdos extremistas por falta de acolhimento.

Ela também destaca a necessidade da atuação de profissionais de saúde mental para atuarem nos ambientes escolares. “E lei para que profissionais atuem [nas escolas], porém na prática isso não é tratado de maneira efetiva”.

Por último, do ponto de vista pedagógico, Rafael Moreira reitera a importância do diálogo com as crianças. “Elas precisam reconhecer limites, nada tem que ser somente no tempo delas. É preciso orientar sem ameaçar, além de trabalhar as questões da cidadania. Devemos reconhecer que elas estão em uma fase de descobertas e possibilidades. Tanto a escola quanto a família devem promover a educação embasada em princípios éticos, morais, sociais e familiares”.