Gigante continental, Brasil desigual também se reflete nas disparidades do campo educacional, sobretudo na educação básica
Era uma vez um país gigantesco e rico, que decidiu padronizar a educação básica para todas as crianças, ainda no final do século 19. Esse país passou por muita instabilidade política, e sua economia está em declínio há décadas, mas ainda conserva uma das maiores rendas per capita e Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da América Latina. Essa poderia ser a história do nosso país, caso a educação básica no Brasil não tivesse sido expandida só na segunda metade do século 20, mas é o retrato do nosso vizinho, a Argentina.
Embora o currículo econômico dos hermanos não seja nada invejável, uma pequena caminhada por qualquer cidade argentina faz qualquer brasileiro se perguntar como décadas de inflação não foram suficientes para corroer a qualidade de vida de seus habitantes. A explicação mais viável é a de que ir ao supermercado é um exercício doloroso, mas as escolas e universidades são abraçadas como patrimônios, um orgulho nacional. E se fosse no Brasil?
Não há necessidade, é claro, de ser efusivo a ponto de ignorar nossos avanços. O IDH brasileiro, por exemplo – que reflete dados relacionados à saúde, renda e educação, saltou de 0,610 para 0,754 desde 1990, o que mudou nosso status de país de médio para alto desenvolvimento. O índice de analfabetismo no Brasil, que na década de 60 era superior a 40%, hoje está em torno de 6%, de acordo com dados do próprio Ministério da Educação. Nosso PIB per capita saltou de 3.344 dólares em 1999, para 8.972 dólares no dado mais recente, de 2022.
Mas apesar dos avanços, o Brasil ainda está distante do ideal. Ainda amargamos a 89ª posição mundial no IDH, fortemente abaixo dos nossos vizinhos Argentina, Uruguai, e Chile, o primeiro da América Latina. No último teste Pisa, que avalia o nível de conhecimento de estudantes de 81 países, o Brasil ficou 54º em leitura, 61º em ciência, e assustadoramente em 64º em matemática. Um estudo de 2018 indicou feito pelo extinto Ibope Inteligência, em parceria com a ONG Ação Educativa mostrou que, naquele ano, cerca de 29% da população do país sofre com o analfabetismo funcional.
Esses dados evidenciam que o avanço da educação básica no Brasil ainda não foi o suficiente para um país que deseja ser uma potência mundial. Também são preocupantes considerando que, para alcançar esse objetivo, os brasileiros precisam alcançar uma competitividade intelectual e profissional que, sem o alcance da educação formal, se torna insuficiente.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – popularmente conhecida como LDB, estabelece que a educação básica no Brasil deve “desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores”. Os docentes, por sua vez, são direcionados pela Base Nacional Curricular Comum, que estabelece diretrizes para os ensinos fundamental e médio.
Esse assunto também é de especial atenção para as instituições de ensino superior, considerando que todos que chegam às universidades passaram pela educação básica, e que uma má formação na educação básica implica sérias barreiras para a consolidação das instituições superiores.
Educação básica no Brasil em números
Para se falar em ensino num país gigantesco e com diferenças regionais e culturais imensas, é necessário entender primeiro qual o tamanho do operativa da educação básica no Brasil. Para isso, é preciso olhar para o Censo Escolar, sendo o mais atualizado o de 2022, referentes aos números de 2021. Esses números, obviamente, são ainda fortemente influenciados pelo cenário da pandemia de COVID-19.
Ao todo são 178,3 escolas em todo o país, para 162,8 mil diretores. Ou seja, várias unidades não contam com um diretor exclusivo para a instituição. Nessas escolas atuam cerca de 2,3 milhões de docentes, para 47,4 milhões de matrículas naquele ano letivo. Um dos números que talvez mais assuste na educação básica no Brasil é a evasão escolar: são mais de 1 milhão de pessoas com idade entre 4 e 17 anos fora da escola.
No ensino médio, a evasão escolar é ainda mais pronunciada. Entre 15 e 17 anos, 7,8% das pessoas estavam fora da escola. Já em relação ao ensino em tempo integral, no ensino médio representavam apenas 20,4%. No ensino fundamental esse percentual é ainda pior: 13,7% nos anos finais, e 11,4% nos anos iniciais.
Outro retrato da educação básica no Brasil são os dados do ensino infantil, ou seja, abaixo dos 4 anos de idade. Embora não seja obrigatório, a presença de creches é um indicador importante do alcance da educação no país, já que é um pilar importante para que crianças recebam educação formal desde os anos iniciais, e também proporcionam maior independência profissional a seus pais.
Nesse nível, haviam cerca de 74,4 mil creches, que atendiam cerca de 36% das crianças de até 3 anos no país. A meta é que neste ano esse percentual chegue a 50%.
Percepções de um educador
O pedagogo e docente do Centro Universitário UniFACTHUS, Bruno Inácio, tem uma atenção especial quanto a essas questões da educação básica no Brasil. Isso porque, além de professor do ensino superior, ele também atua na educação básica. Para além dessa atuação como docente, essa também é a temática de sua tese de doutorado.
“Com foco nos maiores gargalos da educação básica no Brasil, o que eu percebo é que o maior desafio é o docente. Há dificuldade para se ter um alinhamento entre a prática e a teoria. Há documentos norteadores da educação básica que não dialogam com o professor. Tudo vem de cima, e o docente não tem esse momento de reflexão nem participação ativa na construção de políticas públicas”, argumenta.
Para Bruno, documentos como LDB e a BNCC nivelam os alunos para baixo, cobrando coisas simples, como saber ler e fazer as quatro operações básicas. Dessa forma, esses documentos acabam reduzindo as possibilidades dos alunos, e tem uma ausência muito grande da prática e contribuição dos professores. Assim, há uma grande dificuldade em dar a essas crianças e adolescentes uma formação integral para a sociedade.
Além disso, Bruno também explica que, para que se alcance essa formação integral, é preciso ter foco na formação do professor, tanto inicial quanto continuada. Também há a necessidade do alinhamento das políticas educacionais com a realidade da escola, tanto dos professores quanto dos alunos.
“Quando a LDB aponta que o aluno deve receber uma formação básica para o exercício da cidadania, eu percebo que isso é incoerente. Porque para alcançar os termos cidadania e desenvolvimento pleno, esses alunos precisam ter uma formação integral de fato, não só entre quatro paredes da escola. Eles precisam se perceber como parte integral da sociedade. Então a base curricular não acompanha esse objetivo. Ela serve a uma camada nobre da população que quer mão de obra barata”, diz.
Para contextualizar, o professor menciona o exemplo das diferentes realidades de renda no país. Enquanto muitos alunos da rede particular tem a oportunidade de passar maior tempo com os avós nas férias, ir a museus, viajar para o exterior, a criança da educação pública muitas vezes passa todo esse período em atividades na rua. Isso significa que, muitas vezes, os docentes exigem do aluno um conteúdo tão contextualizado, que aqueles das camadas mais pobres muitas vezes não conseguem acompanhar, porque não tem capital cultural para o desenvolvimento disso.
“Nós defendemos que a uma educação integral seja aquela que integre os níveis formal, que são as escolas; a informal, que é aquela que se aprende com os familiares; e não formal, aquela desempenhada pelos museus, parques, cinemas, entre outros. E a educação formal precisa ser a grande responsável por aproximar esses modelos educacionais”.
Já quanto à inspiração, Bruno não se acanha: é Paulo Freire. O grande patrono da educação brasileira é reconhecido em todo o mundo por seus métodos inovadores e pesquisas transformadoras. Inclusive seus métodos foram adotados pelos sistemas de ensino mais avançados do mundo, como aqueles dos países escandinavos. Ele também é uma referência muito próxima ao nosso vizinho bem-sucedido, a Argentina.
“O professor é hoje a maior figura de resistência a esses impeditivos para uma boa educação básica no Brasil. E eu posso até instigar um sentimento de revolta em alguns colegas, mas minha referência é Paulo Freire. Por mais que ele tenha trabalhado especificamente com educação de jovens adultos, ele nos traz o conceito de escola que é onde o indivíduo se encontra, professor e aluno, e a partir da prática reflexiva, esse docente vai modificando a prática em que aquela instituição está inserida”.
(Texto: Bruno Corrêa – Assessoria de Comunicação Ecossistema BRAS Educacional)